Carta do Sertão

Há muito tempo não lhes escrevo. E se assim começo esta Carta é por me perceber como um emissor tomado pela presunção de que haja receptor, receptores, do outro lado. Há boas e más presunções, é certo, e a que me move se pretende como boa, ou pelo menos desprovidas das “marvadezas” comuns. Não se trata de presunção motivada por mera vaidade, mas por uma profunda boa-fé. Presumo que uma Carta do Sertão seja de interesse de todos aqueles e aquelas que estão atentos às disparidades que caracterizam o projeto brasileiro de Estado-nação, que neste 2024 chega formalmente aos seus 200 anos. O Sertão é o interior desse projeto, suas entranhas que, afinal, explicam por que a nação é uma aberração. Tudo que se apresenta na superfície, que é de conhecimento de todos por toda parte, só é totalmente compreensível no Sertão, a partir do Sertão. Consideremos agora, no campo político, a cada vez mais difícil governabilidade do Governo Lula. Muito simples: o Sertão é dominado pelo Centrão. O Sertão, isto é, todo o interior do país, é dominado por uma gente autoritária, coronelista, que nunca aceitou nem aceita regras do jogo democrático para além do discurso, da retórica. O Sertão é colônia dos neocolonialistas que mandam no Congresso Nacional. Então, como não presumir que esta Carta é de interesse público?

Neste momento, quando estamos retomando as atividades do nosso Instituto Daghobé, o que constatamos em termos de nação, esse modo como miramos Brasília, serve como referência do tipo de justificativa que temos para o longo período de semi-inatividade, ou de atividade muito aquém da nossa vontade, pois a vontade tende a ignorar limites, que vivenciamos do final de 2021 até o final de 2023. Não deixamos de trabalhar em nenhum momento, nosso Instituto se manteve aceso sob a liderança de uma companheira de muita luta, a socióloga sertaneja Ruth Ramos Madureira, nossa Diretora-Secretária. Coube a ela responder interinamente pela presidência da entidade durante o período de dois anos em que tive que me afastar em razão de atividades acadêmicas como Professor Visitante de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na UFMG. Ao lado de Ruth, as demais companheiras combativas também estiveram na Diretoria do no nosso Instituto: Alda Márcia, Rosevânia Nunes, Oretida Rosa, Yara Martins, Luci e Lurdinha, bem como os companheiros igualmente combativos Sivaldo Ribeiro dos Santos e Victor Hugo Chagas. Combateram o bom combate, contribuindo, dentro de suas possibilidades, para manter nossa bandeira de dignidade sertaneja, atravessada pela história comovente de resiliência do nosso povo, corajosamente erguida.

No Sertão, nascemos sabendo a lição diadorínica, que o que a vida quer de nós é coragem, e por isso sobrevivemos, por isso resistimos às forças malditas do atraso que, no Brasil, vêm de cima, das elites dominantes, ao contrário do que muitos, imersos em preconceitos baixos, acham. Essas forças, covardes, é que nos impedem de erguer, a partir do Sertão, um projeto de nação equânime, pautado pela divisão justa dos recursos materiais e simbólicos que são produzidos por nós mesmos, pela maioria trabalhadora, descendente de escravizados, e que permanece escravizada juridicamente em razão de um republicanismo fascistoide. A corrente do bem comum, a obra social necessária, empenhada na reversão do estado de mal estar racial, encontra muitas pedras nos caminhos do Sertão. Nosso Instituto Daghobé tem comprovado esta terrível realidade há 16 anos, razão pela qual, apesar de todo o nosso empenho, não conseguimos até agora viabilizar nenhum dos nossos projetos prioritários listados neste site. Somos sistematicamente barrados por todos os agentes do Centrão que, no Brasil profundo, incluem até aqueles e aquelas que, no Planalto, dizem representar os excluídos, os pobres, os pretos, os indígenas, os trabalhadores, mas que representam realmente os interesses das grandes oligarquias, dos grandes grupos econômicos. Daghobé é coragem para defender incondicionalmente os interesses da gente sacrificada do Sertão, dos irmãos e irmãs dagobés historicamente esquecidos até por quem se elege com seus votos para servir ao Centrão. Deus esteja!

Anelito de Oliveira
Presidente do Instituto de Desenvolvimento Humano Daghobé