CARTA DO SERTÃO 15-03
Em face da Shoá, do chamado Holocausto, do extermínio absurdo de cerca de seis milhões de judeus, muitos tiveram e ainda têm a cara de ferro, pois pau é pouco, de perguntarem como, por que, tudo aquilo pôde acontecer, por que, afinal, as vítimas não reagiram contra tanta maldade supostamente perpetrada apenas por um endemoniado, o monstro Adolf Hitler.
Um olhar ingênuo sobre a história é, em si, uma violência simbólica intolerável, investida de uma má-fé típica de mentalidades omissas, que estão sempre buscando explicações que lhes são convenientes, que, no limite, possam aliviar uma consciência pesada que sabe, fundamentalmente, o quão é elevado o seu grau de responsabilidade pelas atrocidades processadas na vida social.
Não, as vítimas fatais da Shoá não puderam conter uma máquina mortal que se pôs a funcionar de modo cada vez mais acelerado, avassalador, como um tsunami, impondo-se sobre a massa de pessoas tresloucadamente, sem que essas pessoas tivessem tempo de organizar reações coletivas, resistência coordenada, contra-ofensivas que pudessem pelo menos evitar a perda de um número tão grande de pessoas.
O que se deu ali não foi diferente do que se deu em outros tantos genocídios perpetrados ao longo da história por toda parte por um suposto endemoniado contra massas de supostos corpos dóceis na África, nas Américas, no Oriente Médio, na Ásia, eventos de que são exemplos caseiros o massacre de milhões de índios e negros aqui mesmo no Brasil.
Quando o mal se naturaliza, banaliza-se, lembrando Hannah Arendt, quando a máquina de matar funciona sem que ninguém que pode detê-la tome a atitude de detê-la efetivamente, as pessoas em geral, a massa, morrem de modo igualmente natural, banal, não porque querem morrer, mas porque morrer se torna algo normal, ordinário, deixa de ser novidade para essas pessoas, passa a ser tão natural como respirar.
Assim nos acercamos, uma vez mais, da nossa situação atual no Brasil, tentando encontrar um modo de exprimir algo que não seja previsível, que não seja um lugar comum, sobre um quadro tão desolador, que se complica cada vez mais com o aumento galopante do número de infectados e de mortos, por um lado, e sonegação evidente de uma campanha de vacinação urgentíssima e abrangente, bem como de um sistema de saúde pública ágil e eficaz.
Aparentemente, milhões de pessoas estão aceitando a morte imposta pela via da omissão, da irresponsabilidade, por quem está à frente das instituições estatais brasileiras neste momento, a começar pelo Governo Federal, mas a questão básica é: o que pode realmente grande parte dessas pessoas que morreram ou estão à beira da morte neste momento?
Sabemos bem há meses que a maioria das vítimas fatais da pandemia pertence ao segmento pobre da população brasileira e tem seu traço étnico-racial negro bem acentuado. Parentes dessas pessoas aparecem na televisão e na Internet agonizando por não terem conseguido leito hospitalar ou respirador depois de vários dias de sofrimento, de luta, de resistência.
As vítimas da Covid 19 lutam em vão, morrem lutando, não se entregam até o último instante, revelando-nos uma imagem inesquecível, que não poderá ser esquecida pelas próximas gerações, que aqueles que sobreviverem têm obrigação ética de carregar até o fim: a imagem de uma resistência diante de uma força que é esmagadora, que destrói tudo a sua frente, a força de uma máquina mortal naturalizada.
Essa máquina só pode ser contida pelos detentores do capital dinheiro neste momento no Brasil, que mandam no Estado, que podem obrigar os três poderes harmônicos entre si – Executivo, Legislativo e Judiciário –, que cuidam bem de si, a serem humanos, a trocarem a representação institucional pela ação real diante de uma realidade que não admite tergiversações: milhares de mortes, milhões de possíveis mortos.
Nada, absolutamente nada, pode ser usado para justificar a gestão desumana da Pandemia pelo Governo federal, muito menos para justificar a omissão de quem muito pode fazer para salvar vidas neste momento, o que significa, no fim das contas, salvar a própria vida, salvar o país, salvar o planeta, salvar a humanidade. Façamos todos o muito que podemos fazer, sim. Veja nossos projetos e ações neste site. Contribua. Deus esteja!
Prof. Dr. Anelito de Oliveira
Presidente do Instituto de Desenvolvimento Humano Daghobé