CARTA DO SERTÃO
Gestores de algumas cidades nos Estados Unidos decidiram tomar uma iniciativa admirável: criar um programa de transferência de renda a famílias sacrificadas pela Pandemia do Coronavírus. Estão repassando 500 dólares mensalmente a essas famílias para que possam comprar alimentos e produtos fundamentais a qualquer casa, bem como investir na geração de renda e avançar na reconstrução da vida. Os resultados já estão aparecendo na forma de revitalização da economia dessas cidades, com pessoas vivas e saudáveis, produzindo, vendendo, comprando. Trata-se de exemplo que merece muito ser copiado por administrações públicas municipais no Brasil e outros países eternamente marcados pelo subdesenvolvimento neste que é, sem dúvida, um dos momentos mais terríveis da história humana. Não vale aqui o contra-argumento previsível, genérico, de que a iniciativa dos gestores estadunidenses se explica pelo fato que estão no país mais rico do mundo. Também não vale aqui o contra-argumento, também previsível e genérico, de que prefeituras no Brasil são todas “quebradas”, vivem de repasse de verbas como FPM (Fundo de Participação dos Municípios), que sequer são suficientes para pagar o salário dos seus funcionários.
Momentos de crise exigem o acionamento de todas as forças objetivas e subjetivas, a começar pela força de vontade, pela força de caráter, que passam a constituir forças motrizes de processos criativos que, a médio prazo, resultarão em soluções para a crise até então insuspeitáveis. Evidente que a Pandemia nos coloca, desde o início, um problema de ordem econômica diante do qual quaisquer outros problemas se tornam secundários: o problema da miséria. Milhões de pessoas sem emprego por toda parte no país, cerca de 27 milhões nas garras da pobreza extrema, conforme dados recentes da FGV, mais de 36 milhões de pessoas, por outro lado, dependentes dos “bicos”, dos “corres”, de uma Economia informal nos últimos anos – uma Economia imbricada nas ruas e praças que agora constitui entrave gigantesco à contenção da propagação do vírus Covid 19. O que podem os R$ 150,00 ou R$ 375,00 que o Governo Federal começou a repassar a pouco mais de 46 milhões de sacrificados pela Pandemia nesta primeira semana de abril¿ Qual família pobre, com seus gastos mínimos, consegue sobreviver com um valor desse, que não é suficiente sequer para uma pessoa sobreviver adequadamente¿ Claro que o Governo está denunciando, uma vez mais, com esse valor que não tem força de vontade, tampouco outras forças subjetivas, para o enfrentamento devido do problema que se coloca. Certamente porque, desde o início de toda a crise sanitária em curso, o Governo lida com uma perspectiva muito mais apriorística – e, portanto, subjetiva – que efetiva sobre a Pandemia, deseja resolver a Pandemia no plano da conversa, do discurso tresloucado, não da prática.
A operacionalização adequada da Pandemia no país no plano prático tem vindo desde o início da instância onde se efetiva a vida da população, das cidades (Montes Claros, de onde escrevo esta Carta, é exemplo notável), com a intermediação de Governos Estaduais, a começar pelo Governo paulista. Não há dúvida nenhuma que sem a atitude resistente do Governo de São Paulo ao negacionismo do Governo Federal teríamos uma situação pior no país neste momento, com um número maior de mortos e com um processo de vacinação sequer iniciado. Essa atitude se explica também – não só, evidentemente – em razão do fato de que a Pandemia, com o adoecimento e morte de pessoas, destrói objetivamente cidades, lugares onde se efetiva a vida material da população. Por isso mesmo governadores e prefeitos de um país de proporções continentais sentem com mais força a Pandemia, a pressão gigantesca de um problema. O contra-negacionismo, a afirmação dos pressupostos científicos, a adesão aos protocolos da OMS (Organização Mundial da Saúde), o enfrentamento do empresariado desumano e o investimento na produção e compra de vacinas são medidas que garantiram e continuam a garantir que o Brasil não se transforme no maior cemitério do planeta terra. Precisamos, entretanto, de novas medidas que possam, urgentemente, conter o alastramento da miséria, e a transferência de renda a famílias pobres é, sem dúvida, uma delas. Há exemplo dessa transferência já dado no país por Governos do Rio e São Paulo, mas não do modo planejado, continuado, tal como observado nos Estados Unidos. Trata-se de medida fundamental especialmente no interior do país, em regiões como o sertão mineiro eternamente abandonadas por Governos Federais que lidam, de modo frio, com o mapa do país, com números, não com pessoas, seres humanos que habitam cidades, lugarejos, roças. Pessoas cujo único patrimônio é a vida, que neste momento tem sido ceifada ou ameaçada de sê-lo não pelo maldito vírus – uma consequência -, mas pela fome, a miséria, a falta de vacina e um sistema de saúde pública que já vinha sucateado durante anos e agora se mostra cada vez mais arrebentado, cujo funcionamento tem sido possível graças, sobretudo, ao heroísmo de profissionais humanos, comprometidos com o salvamento de vidas. Deus esteja!
Prof. Dr. Anelito de Oliveira
Presidente do Instituto de Desenvolvimento Humano Daghobé