CARTA DO SERTÃO 01-03

Foto: Internet/divulgação

A Pandemia é a prova dos nove da solidariedade. Inquire-nos diuturnamente sobre o sentido disso, sobre o que é solidariedade, sobre o que entendemos por solidariedade, sobre a complexidade de algo que frequentemente é percebido como natural, mecânico. Nossa conclusão básica é que solidariedade não passa de uma palavra bonita na boca de muita gente. Na prática, poucos são solidários até em relação ao seu grupo familiar e menos ainda em relação às pessoas em geral, especialmente aquelas que têm um defeito insuportável: ser pobre.

Desde o ano passado, estamos vendo através dos canais de Internet e dos meios de comunicação tradicionais, que a Covid-19 tem sido implacável especialmente com aquele segmento da população mais sacrificado ao longo de toda a história social. Pessoas pobres, que geralmente são também negras em países como o Brasil, são a maioria dos acometidos pelo vírus e também a maioria dos mais de 250 mil mortos aqui e milhões de mortos pelo mundo. O contágio dessas pessoas está diretamente relacionado a condições precárias de moradia, de alimentação e cuidado médico. Há uma causa objetiva, portanto, de ordem econômica para toda essa carnificina a que estamos assistindo.

Se não é possível dissociar as esferas econômica e política, já que regras do jogo econômico são definidas em consonância com interesses políticos, as vítimas pobres e pretas da Pandemia são escolhidas por uma economia política da morte. O Estado brasileiro, que deve ter seu rosto objetivado para ser responsavelmente pensado, não é solidário com essas vítimas porque reconhece na doença e na morte sua grande fonte de lucro neste momento. Esse reconhecimento é coerente com todo o histórico desse Estado no país, que é um histórico de opressão e dizimação de índios, negros, pobres, idosos, subalternizados e explorados pelas elites sanguinárias que subvertem qualquer princípio moral, ético e legal em nome de dinheiro.

Quem é o Estado, afinal? Quem é esse sujeito sobre o qual tanto se fala? Trata-se de uma abstração? Evidente que o nosso cinismo cotidiano, que se tornou inerente ao nosso modo de ser e estar socialmente, acaba por nos levar a crer que nada temos a ver a com o Estado. Mesmo servidores públicos, tanto no Brasil como em outros países eternamente marcados pelo colonialismo, tendem a achar em geral que nada têm a ver com o Estado, que isso é coisa de quem está à frente de cargos eletivos, exercendo mandatos provisórios. Nada mais cômodo. A verdade é que o Estado somos todos nós, titulares de direitos e deveres, cidadãos e cidadãs documentados, identificados, conectados, que vivem sob a égide de um determinado ordenamento jurídico.

Estado não se confunde com Governo. O limite de ação de todo Governo acaba ali onde começa uma série de valores estatais que se colocam além e aquém de qualquer Governo, valores que estão grafados no texto constitucional como causas pétreas, imutáveis, estruturantes da própria sustentabilidade de um povo.  A “dignidade da pessoa humana” é um dos valores fundamentais do Estado Democrático de Direito no Brasil, como proclamado pelo Inciso III do Artigo I da Constituição de 1988 ainda vigente. Só uma consciência de ser parte integrante do Estado pode nos fazer solidários nesta Pandemia com aqueles que estão lançados a uma situação de mortal indignidade por um Governo negacionista, sim, irresponsável, sim, mas que produz suas monstruosidades com a solidariedade macabra de milhões de brasileiros e brasileiras.

Nosso Instituto Daghobé tem na solidariedade prática, não numa mera ideia de solidariedade, sua referência de ação. Por isso está agindo cada vez mais intensamente, com total responsabilidade social e integridade ética, no sentido de desenvolver ações que, por mais modestas que sejam, possam contribuir para que pessoas fragilizadas pela Pandemia consigam se reerguer, tanto física quanto psicologicamente, resgatar sua saúde, encontrar atividades profissionais ou gerar renda para si e sua família, enfim, reencontrar o caminho da sustentabilidade humana.

Nossa campanha para doação de imposto de renda segue crescendo. O Projeto Afeto Literário, que consiste em intermediar doação de livros dos próprios autores a leitores atingidos pela Covid-19 ou em situação de vulnerabilidade na Pandemia, começou esta semana com a escritora France Gripp doando uma cota de livros. No próximo domingo, inicia-se o Projeto Clube de Leitura das Mulheres Negras apoiado pelo nosso Instituto na Plataforma Instagram @clmnbrasil, de 17 às 19hs, com o objetivo de promover a emancipação humana da mulher negra através do compartilhamento de leituras de textos e mundos. Um projeto com a participação solidária das jornalistas Rosane Borges (São Paulo) e Noêmia Colonna (Berlim), da pesquisadora e professora Doutora do IFNM Edneia Ribeiro (Montes Claros) e  da jornalista, empresária e Mestranda em Comunicação na UFMG Etiene Martins (Belo Horizonte). A mediação é da Assistente Social e  professora Yoná Fernanda Moreira  (Montes Claros).

Nós queremos você praticando a solidariedade conosco também, ajudando a salvar vidas e empoderar sujeitos sociais. Ninguém é tão pobre que não possa ajudar alguém mais pobre nem tão rico que não precise de ajuda de alguém, para lembrar a sabença popular tão cara ao povo sertanejo. Tire da cabeça, se porventura ainda acredita nisso, que dinheiro é tudo. Doe afeto, sorriso, abraço, boa vontade, palavra, fraternidade, amor, amizade, energia positiva, humanismo. Não pense jamais que dinheiro e coisas têm mais valor e possibilidade de substituir o capital humanidade. Quanta gente rica lamentavelmente morta nesta Pandemia! Riobaldo sempre: Deus esteja!

Prof. Dr. Anelito de Oliveira
Presidente do Instituto de Desenvolvimento Humano Daghobé

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